sexta-feira

Memórias são Viagens



As casas e os lugares ilhados da minha memória cheiram a laranjas, ao pó das laranjas ao sol. O meu avô cheirava a tinta estalada e quando chegava e pousava a boina atrás da porta, eu sabia que era feliz. Durante o dia, se me deixava ir com ele, punha-me a brincar com a serradura. Eu cheirava a felicidade do cachaço do meu avô, aquele perfume eléctrico dos bonecos que ele pintava.


Naquele tempo, os cheiros assinalavam-se nos mapas porque indicavam caminhos. A casa cheirava a flores secas e a trapos. O pátio cheirava a sardinheiras. O meu pai cheirava a pele esticada, a minha avó cheirava a leite morno. A minha mãe cheirava a figos.
Os cheiros da minha mãe – uma mãe que não sente cheiro – são a rosa-dos-ventos do meu mapa.
As minhas memórias são bolos salgados com fruta por dentro, mordiscados pelos gatos. Enquanto houver sementes que se possam plantar e cal para adoçar paredes, não faltarão mães a cheirar a figos, avós a cheirar a leite, a bonecos de madeira. Marias que nos levem pela mão.

Vou desembrulhar o coração
e fazer dele um mapa,

daqueles que se dobram
para a gente levar no bolso.

Sem comentários: